sexta-feira, 19 de julho de 2013

Ruas, sítios e semáforos

Visito mais uma vez um reduto de um amigo virtual.
É um sítio (que as crianças de hoje aprenderam a chamar de “site”), mas daqueles que não têm árvores frondosas e orvalhadas, como eu lembro as que existiam em alguns quintais de velhas casas da Rua Jundiá, reminiscências de uma infância que corria na velocidade do tempo, sem freio que desse conta das trelas nem chinelas que freassem as aventuras. Jundiá, rua de sítios e jardins, árvores frondosas e cigarras cantantes sem atentarem para os reclamos das formigas, que trabalhavam incansavelmente esperando pelo inverno já anunciado. E as cigarras, nem aí!!! Queriam era cantar. Certas elas, trabalho nunca foi coisa boa.
E acho que as formigas - lacônicas, mecânicas, tropa que não saía da linha, marchando umas após outras sem perderem o prumo - acabavam por descarregar suas amarguras laboriosas sobre nós, pobres crianças sonhadoras, como o canto das cigarras.
 Enchiam-nos de ferroadas que queimavam como brasa. Outro dia - dia desses, quando ainda era menino - um coleguinha teve que expor suas partes mais íntimas em plena Avenida Rosa e Silva, bem em frente ao já sepultado Cine Coliseu. Sentado sobre o meio-fio, conversava sobre as raparigagens de menino mais velho, papel contrito do maloqueiro mais experiente a passar lições de vida aos mais novos (isto causava admiração, o sujeito ganhava o respeito do grupo...). De repente, um grito alucinante e a exposição, para fora do calção frouxo, da sua "alavanca". E seus olhos, esbugalhados, assistiam a vitória da formigona triunfante com as garras de alicate cortante bem trincadas na glande do "objeto". Uma dor e um prazer. Uma vingança e a morte repentina, a formiga esmagada pela ira do agredido. Mas o himenóptero certamente morrera com a bravura do dever cumprido...ou da tara saciada! 
Tenho uma alma retintamente encarcerada nos dias chuvosos de julho. Principalmente essas tardes me acalantam com o estridular das cigarras, reticências da infância em uma mente adulta abarrotada de penares. Aí me vem na tela do passado as atraentes poças de lama, tapete sobre os quais jogávamos sofridas partidas de futebol, os dedões dos pés estraçalhados de chutes em cheio no pedregulho oculto nas poças d’água. Minha vó, Miné, à janela, cabocla de cabelos estirados e caprichosamente dominados pela marrafa de osso da qual ela separou-se somente pela morte, olhinhos miúdos a vigiar nossos movimentos e sonosras queixas com ameças de castigos, carreiras desembaladas que acabavam nos esconderijos das moitas dos pés de colônia que perfumavam a casa da Rua Jundiá. 
Tudo eram divertimento e brincadeiras: piques de esconder, pega-pega, subir em árvores e roubar frutas do frondoso sítio do Dr. Morais Rêgo, balear indefesos passarinhos (coitadinhos!!!) com bodoques bem caprichosos na pontaria... tanta coisa que não volta mais e que nunca se repetirá. Imagens que os wi-fis vão apagando das telas da vida e que hoje são como um pano preto estirado em cada outdoor, nos quais se lê, sempre e invariavelmente, a ordem do dia: “compre, compre, compre!” 
Uma dia desses vi em um outdoor a propaganda da Palavra. Aos meus olhos, viciados em uma ideia fixa que não se apaga jamais, as letras dançavam na formação do apelo “Compre Deus, compre Deus, compre Deus! Mas compre em nossos templos, onde o produto não é pirata” (ou algum recado parecido). Meu Pai, etiquetaram-lhe um preço; afixaram-Lhe um código de barras...não mais Lho crucificam: vendem-Lhe.
Mas, voltemos à conversa mole: estou visitando, hoje, um dileto amigo, em seu sítio virtual. Sítio cujos frutos não têm sabor de goiaba, nem de pitanga, nem das romãs da casa de meu saudoso pai - outra caverna da meninice que vez por outra ilumino -  porém causam-me igualmente um prazer que retoma tempos nostálgicos, com cheiro de chuva e sabor de fruta madurinha, derrubada a vara. 
Frutos deiscentes que vão ladeando estradas saudosas sobre as quais caminho como quem experimenta, sôfrego, pela última vez, as goiabas adocicadas da rua Jundiá, doçura da infância; da avó à janela, do cágado paciente esquadrinhando cada centímetro daquela casa, que caminhava incansavelmente sem saber para onde nem porquê; da romãzeira paterna cujos frutos decoraram muitos natais. 
No sítio do Eurico, estico os braços e colho o sabor do guaraná Fratelli-Vita, que os sais da Coca-Cola raptaram e  esconderam, para sempre, sem dar a chance de um resgate porque não tem dinheiro que pague a lembrança da garrafinha que trazia o sabor inigualável da gasosa de maçã. Sabor das tardes televisivas da Tupi, que uma grandona da mídia também raptou e todo dia nos cobra o resgate, que temos de pagar em gotas de suor e sangue derramados pela tela que a TV LCD vai derramando diariamente na sala das casas. E recomenda horário próprio para crianças a partir de qualquer idade; qualquer idade é tempo de aprender com a violência, o impudor, a nudez explícita, implícita na cegueira dos vigilantes sociais. O “Programa da tia Linda”, ao qual assistia deitado sobre a mesa entalhada, de jacarandá, móveis sempre muito polidos que minha mãe mantinha como diploma de "dona-de-casa responsável e caprichosa", saudosa morada de Casa Amarela. As cadeiras, com assento e encosto de couro, talvez ainda existam por aí. A casa ainda está lá, resiste ao tempo, remendada, renovada aqui e ali... mas nada me seduz como a via antes. Das doces lembranças, somente um velho jambeiro permanece no terreno, alto e altivo, sentinela como que ainda esperando a minha volta àquela casa feliz.
Pensei que nunca acabariam, esses sonhos. Assistia à TV deitado sobre a mesa de jacarandá. Minha mãe vivia reclamando: “Menino, desce daí. Quem deita sobre a mesa é defunto”. Naquele tempo, velavam-se os mortos sobre a mesa da sala. Passei a deitar sobre o assoalho, fresquinho, com cheiro de Pinho-Sol e cera Poliflor. Assistia Rin-Tim-Tim e adorava a propaganda da laranjada Cliper, um casal de indiozinhos muito simpáticos. À noite, tomava leite Cilpe e ia pra cama dormir, cedo; no outro dia, Dona Paula – uma mestra tão eficiente quanto elegante, linda meio-senhora – me aguardava no grupo escolar Manoel Borba, prédio que chora seu abandono e me faz chorar quando avisto sua fachada, velhinha, decadente, esquecida. Paciente, cartilha de uma capa verdinha nas mãos, D. Paulo ia apresentando as fichinhas perfuradas daquele livrinho verde para ensinar-me o BÊ-A-BÁ!!!
Nunca mais deitei sobre a mesa, mas já vi passarem em todas as salas de meu pensamento muitos defuntos. As velhas e saborosas propagandas, estas, também, nunca mais as vi. Foram-se, com os mortos de minha vida. A querida mestra, D. Paula, também morreu, mas seu carinho ainda está bem vivo em cada texto que leio.
Visitar o sítio do amigo acendeu-me a chama das lembranças mais entranhadas, coisas sobre as quais achei nunca mais reviveria. O tempo...o tempo é curto para tudo...o semáforo passa rapidamente da cor vermelha para a verde e nos impele a uma onda automotora, de fumaça e buzinaço, que vai seguindo em fila quem sabe para onde, como as formigas ou o paciente cágado da Jundiá. 
O povo é gado, já disse um poeta! E suas palavras continuam ecoando per omnia saecula saeculorum.
Despedi-me das recordações com o cuidado de guardá-las a sete chaves e pra não esquecê-las jamais plantei sementes de letras neste papel.

Queira Deus o semáforo apressado permita-me um tempinho para regá-las todos os dias.

Um comentário:

renan roberto disse...

Nossa! Um vívido relato do passado. Sinto-me nesses verdejantes sítios, o vento soprando em meu mosto, o canto das cigarras agraciando meus ouvidos, o sabor de frutas citadas que, por incrível que pareça, nunca provei. Bons tempos! tempos ainda vivos nas lembranças daqueles que tiveram a sorte de conhece-los. Infelizmente, um devorador chamado Capitalismo insiste em delimitar cada vez mais o espaço daquilo que já foi motivador de tão bons momentos para aqueles que tiveram a sorte de, em tais bons momentos, viver. Não irei olhar para um prédio antigo com uma fachada velhinha, decadente e esquecida da mesma forma que olhava antes. Imaginarei os bons momentos que lá foram vividos. Bons tempos, onde o valor das coisas não era ditado pelo código de barras.

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